O desafio da maratona: rituais, cognições, bioquímica e emoções do corredor

Uma maratona é um desafio para o corpo e para a mente no qual um grande número de processos físicos e psicológicos são acionados. O psicólogo Marcelo Ceberio fala mais sobre isso.
O desafio da maratona: rituais, cognições, bioquímica e emoções do corredor
Marcelo R. Ceberio

Escrito e verificado por o psicólogo Marcelo R. Ceberio.

Última atualização: 23 agosto, 2022

A maratona é a mais alta das competições de corrida . É um verdadeiro desafio para o corpo, a estrutura óssea e muscular, o sistema cardiorrespiratório, mas também é um desafio para a mente. O cérebro e as emoções são tão importantes quanto a capacidade física nesta prova.

Emoções, imagens cognitivas, ações e neurotransmissores em sinergia absoluta despertam no cenário do maratonista, para quem cada corrida é um desafio pessoal e um feedback para as próximas competições.

Ritualismo na preparação

Depois da maratona ainda se observam restos fósseis, vestígios que os varredores de rua não conseguiram limpar das garrafas de água amassadas, géis de hidratação que brilham ao sol, folhetos de outras corridas… Em suma, testemunhos mortos (embora mais vivos do que nunca na memória) que mostram a passagem das últimas etapas da corrida.

Para quem corre longas distâncias, não é comum competir muitas vezes por ano. Não existem muitas provas que marcam distâncias de 42, 30 ou 21 km nos calendários anuais de corrida, embora a fisiologia humana também não permita repetir esforços soberanos sem uma margem considerável de recuperação.

A raridade das corridas de maratona faz com que a participação na competição não se torne uma rotina e com que esse fato adquira um certo atrativo de adrenalina.

Por outro lado, para o atleta amador, há três momentos na maratona: a semana anterior, o momento da corrida e a semana após a competição.

Pessoas correndo prova

Embora o treino da semana anterior seja baseado em regeneração ou corridas leves, costuma haver algum descanso, sobretudo do corpo, já que o cérebro do corredor não para de pensar no percurso, nos tempos, nas memórias da última maratona ou no estudo mental do caminho.

Toda essa semana é tingida de um certo ritualismo e magia, e até mesmo de clarividência. Além disso, há uma certa carga constante de adrenalina (e um aumento do nível de cortisol), uma certa tensão muscular que não permite um descanso relaxado e que aumenta com a aproximação do grande dia.

Por isso, é aconselhável aproveitar o sono dois dias antes, ou seja, se a maratona for no domingo, durma bem na sexta-feira, pois sábado é um dia de tensão em que os sintomas costumam não aparecer durante o dia, mas aparecem à noite, quando o corredor tenta adormecer ou acaba acordando antes de o despertador tocar.

Duas horas antes da prova, começa a se desenrolar o ritual do corredor de longa distância. Este sabe que a ajuda da vaselina sólida ou de outros elementos é milagrosa e que existem três lugares-chave, já que tudo o que parece banal ou insignificante ao longo dos 42 pode se tornar torturante.

O próximo passo é colocar os principais dispositivos do corredor: os tênis. Claro que não são os novos: é sempre recomendável que nada seja estreado no dia da corrida para evitar desconfortos e atritos inesperados. Bem lavados, os tênis levam as marcas do corredor: a forma e o arco de seu pé, o apoio do calcanhar…

Nesse momento, a tensão da adrenalina está a serviço de um alerta hipervigilante. Os músculos estão tensos, borbulhando por dentro. É a mesma que encontra uma via de descarga no estômago e intestino e favorece a micção uma, duas, até três vezes.

Sua casa está em silêncio. É muito cedo e ele não quis acordar ninguém com ruídos de preparativos. Os adolescentes ainda não chegaram, o caçula dorme em seu quarto. Tudo é um clima de calor de domingo, de amanhecer de domingo.

Ele se senta na cozinha e come no café da manhã um prato de macarrão que esquentou no micro-ondas. Hidrata-se bem, como nos dias anteriores. Come algumas frutas. Bebe um café forte: uma dose discreta de cafeína deixa o corredor no clima.

Está nervoso. Se programa mentalmente com imagens positivas. Coloca o relógio no pulso verificando se funciona bem; embora o use todos os dias, hoje é diferente: deve verificar se não encontra alguma falha. Está cheio de perguntas, muitas das quais já foram feitas. Pergunta-se se treinou bem, embora sua hiperexigência o leve a pensar que sempre faltou um pouco mais. Nem todas as semanas foram completadas, mais ou menos 80 km de distância: não sabe se as passadas de 1000 darão os resultados esperados.

Carrega no ombro uma mochila com roupas limpas, uma pochete que não vai usar porque dói na cintura e prefere não se arriscar, e vai até a porta do prédio esperando que os colegas o busquem. Faz frio, então diz: “Que bom dia para correr!” No entanto, se estivesse 40 graus de calor ou chovesse torrencialmente, repetiria a mesma coisa ou tentaria ver o aspecto positivo. A esta hora, entre as nuvens, filtram-se os primeiros raios de sol.

A solidão do corredor de longa distância

Embora os corredores de longa distância sejam acompanhados pelas demonstrações de afeto de amigos e familiares e estranhos ao longo do caminho, no fundo eles se concentram na única companhia de si mesmos. Atentos, mesmo que estejam com seu grupo de treinamento, procuram não perder todos os momentos de emoção que a corrida traz.

Os corredores de longa distância sabem que, quando o sinal da largada é dado e o relógio eletrônico começa a contar, os primeiros passos são dados de forma lenta devido ao grande número de participantes da maratona. Os passos ganham velocidade e se tornam um trote, e depois vão de trote à corrida conforme os metros avançam.

O maratonista concentrado ouve os sons do seu corpo e fica atento às tensões, às dores musculares, à sua emoção e a cada uma das lembranças que sua mente alterna ao longo do caminho: palavras dos cônjuges, a figura dos filhos que se transformam em estímulo, as pessoas que já não estão mais aqui…

O corredor se emociona quando passa e encoraja um participante cego ou em cadeira de rodas, estimula quem parou sua corrida com visíveis sinais de cansaço (as mãos que se agarram na cintura), algumas vezes saúda alguém que o anima no percurso, outras estará superconcentrado.

Junta-se a um grupo que tem o seu ritmo, e assim correm juntos alguns quilômetros, marcando o tempo. Tenta caminhar alguns passos quando para em um posto de hidratação e bebe água e alguma bebida isotônica. Sabe que deve andar porque, nas vezes em que tentou correr e beber ao mesmo tempo, acabou ficando encharcado e a água – além da transpiração – fica pesada e incomoda.

A verdade é que o corredor de longa distância está sozinho. Só com sua alma, seu corpo, sua estratégia e sua emoção. Para os amadores, os primeiros dez quilômetros oferecem a esperança de uma boa corrida, carregam a ilusão de desacelerar, desde que o ritmo seja regulado e haja ar suficiente para os próximos 20.

Uma meta importante é chegar à meia maratona, embora para a complexa mente humana este ponto seja uma dobradiça para ver o copo meio cheio ou meio vazio: dizem “Vamos lá, já cobrimos a metade!” ou “Ainda falta metade da corrida!”. É também uma denúncia da forma como o maratonista atua em sua vida, se tem uma predisposição negativa ou positiva.

Se não chove, é fantástico, pois embora a chuva refresque, também molha as roupas e principalmente os sapatos e as meias. Assim, ao longo da corrida, o corredor mudará a mecânica de movimento.

Além disso, o calor e a umidade são inimigos do corredor. O pavimento das ruas em conjunto com o sol faz com que ele não alcance a hidratação e os sais minerais indispensáveis para que os músculos funcionem de forma estável.

O que acontece é que, se o corredor de longa distância se sente bem no aspecto muscular, sua mente encoraja positivamente sua corrida. Por outro lado, se seus músculos estão prejudicados, nem consegue pensar com clareza. Entra em um perigoso esforço excessivo, que o impede de pensar em uma estratégia.

Mulher correndo na rua

O muro dos 30 km e o espírito de luta

O grande fantasma do percurso do maratonista é o quilômetro 30. Algo acontece em sua mente. Algo que ainda não se sabe bem o que é, mas que, em maior ou menor grau, se destaca pelo surgimento de um conjunto de pensamentos aberrantes que afetam momentaneamente o gozo da corrida. No entanto, o corpo é sábio. Nesse ponto da viagem, os benefícios das endorfinas equilibram os pensamentos catastróficos e fazem o prazer ganhar terreno.

Para os corredores amadores, os últimos 10 km costumam ser marcados por pensamentos torturantes, dores musculares, cansaço geral e ansiedade para terminar. A mente não para de pensar. No entanto, esses sintomas costumam se apresentar em intensidades diferentes – e em alguns casos nem ocorrem -, embora às vezes sejam agravados pelo panorama do contexto.

Este é um período em que a concentração pode ser perdida e se observa o entorno. Além disso, depende mais do exterior do que do interior: presta-se mais atenção ao corredor que nos supera do que ao que superamos.

A verdade, em síntese, é que nesta dimensão do percurso se juntam uma série de fatores, e muitos deles apresentam contradições:

  • Cognitivo: pensamentos negativos espontâneos que são confrontados com pensamentos positivos.
  • Orgânico: deficiência de sais minerais, dores musculares, cãibras por esforço excessivo, lesões e feridas ou bolhas devido ao atrito, que se confrontam à tendência do corpo em estabilizar essas disfunções.
  • Emocional e químico: ansiedade para terminar, ou conflitos devido a condições corporais em confronto com a sensação de bem-estar, que provocam a cota de endorfinas no sangue. No sistema nervoso central, a dopamina motivadora e o cortisol que persiste.

No entanto, esses fatores não estão dissociados, estão em sinergia total e influenciam-se mutuamente. Por exemplo, um simples pensamento positivo pode produzir doses de endorfinas e dopamina que geram o incentivo necessário para minar a dor muscular.

Por outro lado, naquele quilômetro 30 se distribui o estranho gel de hidratação, uma espécie de melaço que nos lembra o xarope para tosse da infância, mas ele tem seu risco. Por volta desse ponto da corrida, as reservas de carboidratos diminuem e a ingestão de um pacote de gel implica injetar no corpo uma cota de alto índice glicêmico. Nosso corpo, então, detecta um aumento da glicose sanguínea, e imediatamente secreta insulina para combater os níveis de glicose, o que gera o efeito contrário ao desejado.

Além disso, a motivação faz falta nesses momentos. O maratonista se estimula, diz coisas para si mesmo, vibra internamente como se fosse o primeiro que vai cruzar a linha de chegada. Às vezes, deixa-se impressionar pelo apoio das pessoas que presenciam a maratona. É uma contínua coreografia que vai do mundo interno ao exterior: vozes internas e externas estimulam e motivam o corredor.

Além dessas explicações técnicas, o maratonista tem um grande espírito de luta e faz do sacrifício uma forma de dedicação, um ícone do seu trabalho na busca pelo alcance da meta. E tudo isso é desfrutado.

Ser maratonista é um exercício de vontade, é a aplicação da tenacidade para atingir a meta.

Essa proximidade com o objetivo é observada quando não são mais contados os quilômetros percorridos, e sim os restantes. Nos últimos 5 quilômetros, lá por volta dos 37: não só faltam alguns quilômetros, mas falta pouco tempo para a chegada.

Nada é igual depois dos 42.195 metros na maratona

Internamente, não é que as dores desapareçam, mas quando o corredor está perto do fim, o foco da dor muda para a possibilidade de terminar. Assim, os quilômetros passam. Na verdade, quando é o quilômetro 40 que aparece diante dos olhos do corredor amador , ele praticamente sente que chegou. Esses últimos 2.195 metros rolam.

As imagens antecipatórias da chegada fazem com que as endorfinas trabalhem em plena capacidade e minem as últimas dores que se acumulam. O corredor fica mais na chegada do que na corrida. O foco é a última reta.

Linha de chegada da maratona

A reta final da maratona

Quando a placa do quilômetro anunciar 41, esse será o último quilômetro da vitória. Nos últimos quilômetros a marca não importa mais, o mais importante é chegar, o heroísmo está em chegar. 

O corredor pensa que na chegada estará sua família, sua esposa, seus filhos, seus pais, também um amigo, e até alguns de seus amigos que correm como ele, mas não enfrentaram a maratona. Sente um calafrio ao ver que há mais gente torcendo: é a indicação do prolegômeno da chegada. Ouve os “Vamos, faltam só 300 metros!” “Muito bem, força, pois já acabou!”, os aplausos, os gritos …

Entra na reta final, vê a linha de chegada de longe. Ergue o olhar, endireita o seu corpo. Procura no meio do povo o rosto do seu filho, da sua esposa, do seu pai: procura até se surpreender com os seus sorrisos e incentivos. Fica emocionado, às vezes até as lágrimas aparecem. Já não importa a posição nem a marca. Sente que alcançou a vitória porque chegou. Faltam-lhe apenas alguns metros, e cruza a linha de chegada levantando os braços e olhando para o céu.

A vida tem sensações maravilhosas, mas aquele momento, o da chegada do maratonista, é uma das emoções que merece ser vivida com a máxima intensidade. Mesmo depois de alguns dias, o maratonista continua a se lembrar e reviver cada seção da corrida, e a vibrar em sua imaginação toda a experiência em imagens e sentimentos, até que programe sua próxima prova. Lá vai ele, com a sua solidão, em direção ao próximo desafio.


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