Mulheres de presos fazem sucesso no TikTok

"A cadeia me deu de presente muitas amigas. É diferente conversar com alguém que vive o mesmo que você", diz Letícia Nascimento.
Mulheres de presos fazem sucesso no TikTok

Última atualização: 27 julho, 2022

Alguns vídeos postados no Tik Tok por mulheres de presos viralizaram e receberam milhões de visualizações e comentários. Essas mulheres ganharam fama nas redes sociais mostrando a rotina de como é ser mulher de preso, incluindo as dificuldades e a saudade, mas também fazendo piada com a própria vida.

As mulheres que usam a hashtag #mulherdepreso se autointitulam “cunhadas” — já que os maridos são considerados irmãos na cadeia —, e fazem parte de uma comunidade on-line com mulheres na mesma situação, criando uma rede forte de apoio e acolhimento.

O que veio na sequência? Milhões de visualizações, likes e seguidores.

mulheres de presos

Letícia Nascimento

Letícia e Mateus estão juntos desde 2019. Eles se casaram em junho de 2020, uma semana depois de ele ser preso. Ela fez uma pequena comemoração na data em que assinou a união, em um churrasco apenas para o círculo mais íntimo da família dela, que aprova o relacionamento — como a mãe de Letícia, que adora o genro.

Ela teve que formalizar a relação para obter a declaração de amásia, como elas chamam o atestado de vínculo com o preso, que é uma exigência do sistema penitenciário para as visitas.

“Eu era rainha da Cohab, agora sou a Barbie da cadeia”, brinca Letícia ao se preparar para mais uma viagem que sai de Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo, e vai até a penitenciária de Balbinos, interior do estado. São cinco horas de trajeto, repetido a cada 15 dias.

Após se arrumar, ela pega um trem até os arredores do terminal Barra Funda, no centro da capital paulista. Lá, barracas vendem sacolas transparentes, chinelos e lingeries apropriadas para as visitas íntimas: os sutiãs de renda, sem aros, evitam que as mulheres tenham problemas ao passar pelos detectores de metal.

Letícia é chamada de “blogueirinha” por causa das milhares de visualizações que acumula em seus vídeos. Mas a ideia, ela conta, não é ser influencer: “Conto o que vivo sem romantização”.

Às 7h da manhã, ela está na fila para entrar na penitenciária. Com o frio de 9ºC, uma colega diz: “Aqui, só as guerreiras”. Letícia demonstra a mesma personalidade bem humorada dos seus vídeos no TikTok e rebate: “Só as otárias, né?”, gerando gargalhadas em uníssono dentro do ônibus.

A viagem de ida é animada e cheia de expectativas. A volta é triste e permeada de cansaço.

Jéssica Moraes

Jéssica, 23, não pensava em ficar famosa nas redes. Mas, em dezembro do ano passado, um vídeo que postou com o marido no TikTok atingiu 2 milhões de visualizações por uma confusão: as pessoas pensaram que ele era Diogo Eloi, conhecido como Dantes, jogador de Free Fire famoso na internet.

“Ela namora o Dantes?”, dizia um comentário. “Caramba, é ele sim”, replicou outro. Para esclarecer o equívoco, ela publicou um novo vídeo no dia 28 de dezembro. Não é ele e posso provar: meu marido está preso”. “Como assim preso?”, se questionaram os usuários da rede. O novo vídeo atingiu 1,9 milhão de visualizações.

A partir daí, Jéssica passou a contar mais detalhes do seu relacionamento para sanar a curiosidade dos seguidores. Hoje, são mais de 150 mil pessoas que acompanham suas publicações.

“Ainda é um tabu. As pessoas querem saber como funciona lá dentro porque é um mundo a que elas não têm acesso”.

Vídeos com o marido somente nas “saidinhas”

Jéssica e o marido estão juntos há sete anos. Ele cumpre pena desde 2018 em uma penitenciária em Itajaí (SC), município próximo a Balneário Camboriú, cidade onde ela mora. Ele foi preso como réu primário por tráfico de drogas e, agora, cumpre regime semiaberto, o que possibilita saídas de 14 dias duas vezes por ano.

Esses são os únicos momentos em que a imagem de William pode aparecer nas redes dela. E isso ela aprendeu na marra: depois de postar um print de uma chamada de vídeo com ele, feita durante a pandemia, ela teve uma sanção e não pôde visitá-lo entre janeiro e março deste ano.

“Precisamos provar que não somos criminosas”

O julgamento, diz Jéssica, não é somente na internet. Ela, por exemplo, foi demitida de um emprego como costureira assim que William foi preso. No trabalho seguinte, ela passou um ano mentindo sobre a ausência do marido. “Dizia que ele trabalhava em uma plataforma de pesca e estava embarcado, por isso não estava comigo”.

Ela conta que os comentários mudaram conforme “as cunhadas” ganharam espaço e visibilidade na internet. “A Virginia Fonseca (youtuber que tem mais de 37 milhões de seguidores no Instagram), comentou uma publicação minha. Então, muitas pessoas apareceram dizendo ‘Se ela não julga, quem sou eu para julgar?’. O preconceito ainda existe, mas acho que as pessoas têm aceitado mais depois que #mulherdepreso bombou”.

“Esses vídeos ajudam as mulheres a não se esconderem. Por muito tempo a gente se escondeu. Quando comecei a visitá-lo, era vista como uma aberração, as pessoas me olhavam diferente, como se eu tivesse cometido um crime também. Mas existem muitas mulheres iguais, que têm filho, marido ou irmão preso”, diz Jéssica Moraes.

“A rotina das visitas também é sofrida. A todo momento a gente tem que comprovar que não estamos levando nada, que não somos criminosas”.

mulheres de presos

Stefany Pereira

O casal está junto há cinco anos, três na rotina da prisão. Ele está em Hortolândia, a três horas de Itaquaquecetuba, cidade onde Stefany mora, ambas as cidades no estado de São Paulo.

“Quando ele foi preso, foi um choque. Eu tinha acabado de completar 18 anos, pensei em abandoná-lo. Mas passamos a nos comunicar por cartas, ele disse que mudaria, fiz os documentos [da amásia] e estou aí até hoje. Mas é uma rotina bastante difícil”, conta.

“Na pandemia, por exemplo, ficamos um ano e meio sem nos vermos, e a mãe dele faleceu. Não tive como avisá-lo — foram os policiais que deram a notícia”, lembra.

Stefany Pereira, 21, também teve que assinar a união estável com o namorado em janeiro de 2019, quando ele foi preso. Ela é tiktoker e se inspirou em Letícia para começar a fazer seus vídeos. “Decidi gravar para o TikTok o vídeo do Sedex mostrando o que eu iria enviar de alimentos e itens de higiene naquela semana. Postei sem edição, bem simples e teve mais de cinco milhões de visualizações”.

“Já passamos por uma realidade sofrida. Com os vídeos, tentamos tirar esse sofrimento e trazer para um lado engraçado. Não para romantizar, mas para não deixar esse sofrimento acabar com a gente”, diz Stefany Pereira.

Muitas publicações de Stefany no TikTok são respostas às interações de seguidores. Mas, no meio de tanta curiosidade e apoio, também recebe muitos comentários ofensivos. “Só julga quem não sabe como é”, diz ela.

A fila da visita tem gênero

Assim como as mulheres citadas acima, muitas outras contam a sua rotina nas redes sociais. A socióloga Rosângela Teixeira estudou como são construídos os laços de afeto em torno da prisão, principalmente nas visitas, que faz com que as mulheres — que ela identificou ser a maioria dos visitantes a pessoas em situação de cárcere — se desloquem centenas de quilômetros toda a semana. Sua tese de doutorado foi defendida em 2019 na Universidade Federal do ABC.

Ela explica que com a interiorização dos presídios após o massacre do Carandiru, em 1992, familiares de pessoas presas precisaram se organizar entre si para manter o vínculo com seus parentes e trocar informações sobre o que ocorria dentro do sistema penitenciário.

“Percebi que a internet era um veículo para as mulheres se conectarem. Por exemplo, as permissões sobre o que levar e o que vestir variam muito em cada unidade prisional. Ou mesmo para saber como chegar ou como fazer uma visita aos seus companheiros. Grupos de Facebook e WhatsApp são usados para trocar informações sobre rotas de viagem, roupas adequadas e por aí vai”, diz Rosângela.

“O TikTok pode ser uma nova possibilidade de conectar essas mulheres que estão vivenciando situações semelhantes”.

A pesquisadora comenta que o relato das mulheres ajuda a desconstruir o preconceito. “Esses vídeos possibilitam que elas mostrem que são pessoas comuns e ajudam a romper com a estigmatização. Eles são uma forma de resistência”.


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