A incrível história do chef Vo Van Phuoc: fugiu da guerra no Vietnã, foi resgatado no mar e hoje é chef em SP

O chef Vo Van Phuoc e sua esposa, Nguyen Thi Kim Dung carregam uma história tão surpreendente quanto as notas gastronômicas que servem nas mesas do seu restaurante, Miss Saigon.
A incrível história do chef Vo Van Phuoc: fugiu da guerra no Vietnã, foi resgatado no mar e hoje é chef em SP

Escrito por Equipe Editorial

Última atualização: 04 abril, 2023

Vo Van Phuoc é o nome por trás do restaurante Miss Saigon, em São Paulo. Há quase cinco décadas, depois de duas tentativas que acabaram em prisão, ele conseguiu fugir do Vietnã e da guerra. Queria chegar aos Estados Unidos, mas foi resgatado em alto-mar e veio parar no Brasil.

Coincidências da vida, nesse mesmo barco estava Nguyen Thi Kim Dung, que se tornou sua esposa tão logo colocaram os pés no Ocidente. A história pode parecer romântica, mas é tão cheia de reveses que alimentaria um bom roteiro dramático.

Nguyen, de 64 anos, nasceu em Ho Chi Minh (até 1975 chamada de Saigon), no sul do país. Vo Van, 65 anos, é de Qui Nhon, cidade litorânea mais ao centro. A jornada que os trouxe para a América do Sul não foi o primeiro encontro dos dois. Ambos já tinham tentado escapar em um mesmo grupo da convocação para a guerra que o Vietnã travava com o vizinho Camboja. Naquela época, todos os jovens eram convocados para lutar.

“Tínhamos duas opções: ficar nessa situação de guerra ou tentar fugir. Nos dois cenários poderíamos morrer, mas só uma opção resultaria em liberdade. Estava nas mãos de Deus”, recorda Nguyen Vo.

Aos 21 anos, a jovem planejou a fuga com seus irmãos, mas acabou se desencontrando deles e precisou seguir sozinha. “Não podíamos ir até o ponto de partida do barco juntos para que a polícia não desconfiasse, então fui um dia antes. Quando meus irmãos foram me encontrar, eles já tinham fechado a pista e não estavam deixando ninguém passar. Eles ficaram para trás e eu fui.”  

Em uma das paredes do estabelecimento de Pinheiros, há um quadro com uma foto antiga de um barco em alto-mar – e, como se pode imaginar, a imagem não está ali sem motivo. Na realidade, ela é um registro histórico do trajeto que o casal fez para conseguir chegar ao Brasil, em 1979, após uma fuga arriscada do território vietnamita. 

Entre a guerra e a sobrevivência

Depois de anos tentando fugir, eles finalmente chegaram a mar aberto, apenas com as roupas do corpo. Mantimentos, bagagem e outras provisões ficaram para trás, pois eles tiveram que correr da polícia para alcançar o barco.

Foram três dias e quatro noites no mar, encharcados, sem comer ou beber, e boa parte do tempo à deriva, já que o motor do transporte parou de funcionar. “A gente já não pensava que conseguiria; só pensava que todo mundo iria morrer”, lembra-se Nguyen, que assumiu o nome Sônia quando passou a residir no Brasil. O marido também trocou Vo Van por Fu.

Desde o início, o desejo era serem encontrados por algum navio estrangeiro, de preferência americano. Contudo, apenas a terceira grande embarcação que avistaram se dispôs a resgatá-los, justamente um petroleiro de origem brasileira.

O resgate, que não foi tão fácil, foi comandado pelo capitão Charles França de Araújo e Silva no navio José Bonifácio. Com o salvamento, automaticamente o Brasil se tornou responsável pela turma fugitiva.

Depois de uma semana junto da tripulação, os sobreviventes do barco foram deixados em Singapura, enquanto o navio da Petrobras seguiu seu roteiro para finalizar a entrega de petróleo. Na cidade-estado mais rica do sudeste asiático, a turma permaneceu por três meses em um campo de refugiados — a maioria deles, vietnamitas — mantido pela ONU. Foi ali que Sônia e Fu começaram a namorar.

Sem falar um “a” em português

Enviados para o Brasil de avião, aterrissaram em Viracopos, aeroporto em Campinas. Eles chegaram numa manhã de setembro, não sabiam falar nada em português e contavam apenas com uma pequena ajuda financeira da ONU.

“Eu vestia só shorts e camiseta. Estava frio, muito frio”, lembra-se Fu, à época com 21 anos.

Como parte da ajuda que recebeu, ele foi contratado para trabalhar na Volkswagen, em São Bernardo do Campo. Ao lado de Sônia, estabeleceu-se no Ipiranga, bairro onde viveu por muitos anos. Durante três meses, eles estudaram a língua portuguesa com um professor contratado pela ONU.

No Vietnã, Nguyen Vo trabalhava em um salão de beleza e Vo Van Phuoc era estudante. Quando chegaram a São Paulo, com a ajuda de um empresário de origem alemã e sua esposa, eles casaram e conseguiram outros empregos. Vo Van Phuoc foi para a linha de montagem de pneus para caminhões na Volkswagen e Nguyen Vo começou a trabalhar com costura industrial para lojas no Bom Retiro. “Era um trabalho de fundo de quintal, para sobreviver, mas depois passamos a fazer encomendas maiores, até que realmente conseguimos nos estabelecer e formar nossa família”, destaca o chef.  

Na fábrica de automóveis, Fu ajudava a carregar caixas pesadas, de ferragens, mas pediu demissão seis meses depois para abrir uma oficina de costura. Ele queria fazer roupa para os coreanos.

Um ano mais tarde e ainda na zona sul da capital, montou sua fábrica de bolsas, um empreendimento que comandou até 2012. Obrigado a fechar as portas pela concorrência chinesa, decidiu investir em um restaurante, atendendo ao incentivo dos filhos e dos amigos.

O começo da jornada gastronômica

Na casa de Fu e Sônia não faltavam festas com amigos. Os colegas dos filhos também frequentavam o ambiente e se deliciavam com os pratos preparados pelo patriarca.

“Na verdade, meus amigos pediam para ir lá nos fins de semana só para comer a comida do meu pai”, diz o filho do casal.

Mesmo antes de abrir o restaurante, a culinária do casal já era reconhecida por amigos e familiares.

o restaurante

Convencido de que poderia se dar bem na área gastronômica, Fu, ao lado de Sônia e do filho mais novo, herdeiro dos seus dotes na cozinha, embarcou numa viagem de quase um ano pelos Estados Unidos, Alemanha e Vietnã, visitando amigos e familiares com negócios similares nos três países, a fim de aprender tudo o que precisava para abrir um espaço no Brasil.

De volta, o filho, Norman, começou a faculdade de gastronomia em 2013, formando-se chef dois anos depois, enquanto Fu abriu o primeiro Miss Saigon.

O segredo: esforço e dedicação

Apesar dos seus 65 anos, o chef vietnamita não sai da cozinha. Ele comanda a produção diária do restaurante em Pinheiros, enquanto o filho cuida da outra unidade, além de coordenarem a equipe de dez funcionários em cada estabelecimento.

 Vo Van Phuoc

Fu é muito perfeccionista. Se o caldo do Pho Bo não estiver como deseja, descarta os 30 litros que produz quase diariamente sem pensar duas vezes. É ele quem dá o ‘ok’ final no cardápio do Miss Saigon, atualmente com cerca de 40 pratos, alguns típicos da culinária do Sul do Vietnã, outros adaptados das cozinhas da China, Japão, Tailândia e Mongólia.

O prato tradicional: Pho Bo

O Pho é uma refeição comum naquele país, servida em diferentes horários do dia, do café da manhã à tarde da noite. No vietnamita original, sua grafia é Pho bò (a pronúncia é algo como “fuh bóóó”), em que “Pho'” significa noodle de arroz e “bò”, carne.

Os sabores são complexos, graças à quantidade de temperos e especiarias combinadas para proporcionar uma experiência sensorial à mesa.

A composição do prato muda de acordo com a parte do país. O sabor e até os ingredientes podem ser diferentes se o Pho for consumido no Norte ou no Sul. E não é só isso: as alterações também são identificadas de família para família, cada uma dando seu toque pessoal.

“Poucas pessoas conheciam nossa comida. Quando começamos, há dez anos, eram vendidos uns 20 pratos de Pho por semana. Hoje, vendemos de 20 a 30 por dia, em cada um dos restaurantes”, empolga-se Fu.

“É um prato que você come se está mal, se está de ressaca, se está só querendo uma comida gostosa. Pode comer no verão, no inverno, no café da manhã ou qualquer outro horário, porque é leve e de fácil digestão”, comenta Norman.

Hoje, Sônia e Fu visitam a família no Vietnã nas férias, mas eles dizem não se arrepender de sua decisão na juventude. “Tínhamos muita coragem. Fugimos com esperança de liberdade, e é isso que temos agora”.


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