Ex-detenta vira auxiliar de cozinha e se prepara para cursar gastronomia francesa: “Quero mostrar à sociedade que nós podemos mudar, sim”
Existem muitas histórias de pessoas que deixaram a prisão e lutam contra o preconceito para conseguir uma chance na vida. Conheça a história da ex-detenta Ariane.
A sociedade, de modo geral, tende a rejeitar e excluir as pessoas que cometeram atos infracionais, mesmo que já tenham cumprido sua pena. Um preconceito que muitas vezes inviabiliza a reconstrução da vida fora da prisão.
Essa é a história de Ariane Aparecida:
Eu me chamo Ariane, tenho 27 anos, sou mãe de três filhos e moro na Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo. Vou contar um pouco da minha história, da minha trajetória até os dias de hoje…
Tudo começa no ano de 2009. Na época eu tinha apenas 13 anos. Residia em Guaianases, numa comunidade bem animada e divertida, pois possuía tudo que uma adolescente queria: bagunça, bebidas, drogas, amizades falsas e homens que queriam aproveitar de meninas inocentes.
Um certo dia, conheci o pai dos meus dois primeiros filhos. Ele era gerente da boca, e eu fiquei super encantada com aquele homem bonito, mais velho. Acabei me envolvendo com ele. Confesso, foi meu erro. No começo era tudo maravilhoso.
Engravidei aos 13 e aos 17 anos. Uma criança cuidando de dois bebês. Foi quando começou a tortura psicológica e depois vieram as agressões físicas. Nesse momento, eu conheci o tráfico. Descobri o que era sofrer de verdade. Ele me batia diariamente e eu ficava só dentro de casa com meus filhos.
Já mais velha, comecei a usar drogas. Passei a cheirar cocaína para amenizar as dores e o sofrimento. Tortura atrás de tortura por cinco anos. Eu que abastecia as biqueiras e tinha que levar droga com meu filho no colo.
Ao chegar em casa, eu me dopava de remédio. Tentava me matar. Assim foi a minha vida ao longo de cinco anos até eu resolver ir embora para Cidade Tiradentes. A essa altura, eu já estava viciada em cocaína e álcool.
Foi nessa época que eu conheci o meu parceiro de B.O. Ele me ensinou a roubar carros, a maneira de parar os veículos e abordar as vítimas. Em uma dessas presepadas, infelizmente (ou felizmente), fui presa. E confesso, graças a Deus, senão eu não estaria aqui hoje.
Quando eu cheguei na cadeia pensei que eu não sobreviveria naquele lugar, mas eu sobrevivi e aprendi.
Agradeço a Deus por ter passado pelo sistema prisional. Hoje eu tenho novos hábitos, dou valor às mínimas coisas, à minha liberdade, à minha família e aos filhos. Fui sentenciada a oito anos e seis meses. Fiquei um ano em Franco da Rocha, passei por Santana, ficando quase dois anos privada da minha liberdade.
Estou na rua há seis anos lutando, matando um leão por dia. Muitas vezes criticada, humilhada, sem ter a oportunidade de arrumar um serviço digno, porque a sociedade é cruel.
Enfim, o ano de 2021, mês de outubro
Conversando com uma amiga, a Karina, egressa como eu, ela me falou do Instituto Recomeçar. Eu toda desconfiada, desiludida e sem esperança, comecei a pesquisar e me aprofundar. Tentei descobrir mais sobre a instituição que só fazia o bem para egressos e familiares.
Liguei, mandei mensagem e marquei um dia para ir conhecer e passar pelo desenvolvimento. Chegando lá até estranhei, pois eram só pessoas bonitas e arrumadas que falavam super bem. Eu pensava: “Jesus, será que eu estou no lugar certo?”.
E sim, eu estava. O mais importante de tudo é que não me olhavam com olhar de crítica, nem julgamento. Eu era igual a todos, não tinha diferença nem preconceito. Soube ali que eu não estava sozinha nessa luta. Eles também passaram pelo mesmo sofrimento, pela opressão do sistema, pelos preconceitos da sociedade. E eles estavam ali para fazer a diferença e mudar as estatísticas.
Daí em diante, foram só progressos e vitórias. Passei pelo desenvolvimento profissional, pessoal e educacional, juntamente com os meus mediadores Júlio e Jorge. Em um certo dia um colaborador falou uma coisa que eu levarei para toda a vida:
“Nós estamos aqui para somar, apoiar, para segurar sua mão. Nós estamos de braços abertos para vocês, mas quem pode mudar a sua própria história é apenas vocês. Vocês precisam acreditar que vai dar certo. Quando forem embora, nós entregaremos uma maleta com ferramentas. Chegando em casa, vocês terão duas opções: jogá-la em qualquer canto ou abri-la e desfrutar de cada ferramenta fornecida…”
E isso foi o que eu fiz. Abri a minha maleta e peguei minhas ferramentas. Fui desfrutar de cada uma delas e usei quatro nos meus cursos profissionalizantes (trança, design de sobrancelha e controladora de acesso). É estranho uma egressa gostar da área da segurança, do outro lado do muro.
E o mais importante de todos veio depois, pois era o começo de um sonho: fazer o curso de ajudante de cozinha e aprender sobre esse amor pela gastronomia. Deus me deu essa oportunidade. Fiz o curso ao longo de 12 dias no Mercado Municipal da Lapa. Eram duas horas de condução cheia, exaustão física e psicológica, cansaço, dor, choro e a sensação questionadora de “será que vai dar certo?”.
Deu certo!
Agradeço à diretoria do Mercado da Lapa, que forneceu a cozinha para o Centro Paula Souza, CAEF e todos os colaboradores envolvidos.
E hoje eu posso dizer para vocês que eu me formei e através disso e de muita luta, da minha persistência, eu ganhei um estágio na renomada confeitaria da chef Marilia Zylbersztajn, formada na importante escola Le Cordon Bleu. Marilia me deu essa oportunidade de crescer cada dia mais.
Ganhei uma bolsa de um ano de gastronomia francesa, fruto de muitos estudos até altas horas. Futuramente, eu serei uma cozinheira. Minha meta agora é ser uma chef!
Quero mostrar à sociedade que nós podemos mudar, sim. Erramos, pagamos, mas sempre há uma chance para recomeçar.
Hoje eu digo que eu sou apta e qualificada para me reintegrar ao mercado de trabalho e voltar ao convívio social.
Talvez eu seja uma em um milhão… Vamos mudar isso, mostrar para a sociedade que precisamos apenas de uma oportunidade, não de julgamentos ou críticas. Juntos somos mais fortes.
Todos unidos por uma causa somos capazes de mudar a estatística da reincidência criminal.
Hoje eu não me sinto mais como uma egressa, pois eu mudei minha história. Quero ser um exemplo de vida e superação para os jovens da atualidade. Para dizer para aquele garoto ou garota, movido na emoção, na ilusão de dinheiro fácil, que não vale a pena.
Vamos mudar o mundo e as pessoas. Essa foi a receita que eu aprendi.
Relato de Ariane Aparecida publicado originalmente em Instituto Ação pela Paz.
Existem muitas histórias de pessoas que deixaram a prisão e lutam contra o preconceito para conseguir uma chance na vida. Conheça a história da ex-detenta Ariane.
A sociedade, de modo geral, tende a rejeitar e excluir as pessoas que cometeram atos infracionais, mesmo que já tenham cumprido sua pena. Um preconceito que muitas vezes inviabiliza a reconstrução da vida fora da prisão.
Essa é a história de Ariane Aparecida:
Eu me chamo Ariane, tenho 27 anos, sou mãe de três filhos e moro na Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo. Vou contar um pouco da minha história, da minha trajetória até os dias de hoje…
Tudo começa no ano de 2009. Na época eu tinha apenas 13 anos. Residia em Guaianases, numa comunidade bem animada e divertida, pois possuía tudo que uma adolescente queria: bagunça, bebidas, drogas, amizades falsas e homens que queriam aproveitar de meninas inocentes.
Um certo dia, conheci o pai dos meus dois primeiros filhos. Ele era gerente da boca, e eu fiquei super encantada com aquele homem bonito, mais velho. Acabei me envolvendo com ele. Confesso, foi meu erro. No começo era tudo maravilhoso.
Engravidei aos 13 e aos 17 anos. Uma criança cuidando de dois bebês. Foi quando começou a tortura psicológica e depois vieram as agressões físicas. Nesse momento, eu conheci o tráfico. Descobri o que era sofrer de verdade. Ele me batia diariamente e eu ficava só dentro de casa com meus filhos.
Já mais velha, comecei a usar drogas. Passei a cheirar cocaína para amenizar as dores e o sofrimento. Tortura atrás de tortura por cinco anos. Eu que abastecia as biqueiras e tinha que levar droga com meu filho no colo.
Ao chegar em casa, eu me dopava de remédio. Tentava me matar. Assim foi a minha vida ao longo de cinco anos até eu resolver ir embora para Cidade Tiradentes. A essa altura, eu já estava viciada em cocaína e álcool.
Foi nessa época que eu conheci o meu parceiro de B.O. Ele me ensinou a roubar carros, a maneira de parar os veículos e abordar as vítimas. Em uma dessas presepadas, infelizmente (ou felizmente), fui presa. E confesso, graças a Deus, senão eu não estaria aqui hoje.
Quando eu cheguei na cadeia pensei que eu não sobreviveria naquele lugar, mas eu sobrevivi e aprendi.
Agradeço a Deus por ter passado pelo sistema prisional. Hoje eu tenho novos hábitos, dou valor às mínimas coisas, à minha liberdade, à minha família e aos filhos. Fui sentenciada a oito anos e seis meses. Fiquei um ano em Franco da Rocha, passei por Santana, ficando quase dois anos privada da minha liberdade.
Estou na rua há seis anos lutando, matando um leão por dia. Muitas vezes criticada, humilhada, sem ter a oportunidade de arrumar um serviço digno, porque a sociedade é cruel.
Enfim, o ano de 2021, mês de outubro
Conversando com uma amiga, a Karina, egressa como eu, ela me falou do Instituto Recomeçar. Eu toda desconfiada, desiludida e sem esperança, comecei a pesquisar e me aprofundar. Tentei descobrir mais sobre a instituição que só fazia o bem para egressos e familiares.
Liguei, mandei mensagem e marquei um dia para ir conhecer e passar pelo desenvolvimento. Chegando lá até estranhei, pois eram só pessoas bonitas e arrumadas que falavam super bem. Eu pensava: “Jesus, será que eu estou no lugar certo?”.
E sim, eu estava. O mais importante de tudo é que não me olhavam com olhar de crítica, nem julgamento. Eu era igual a todos, não tinha diferença nem preconceito. Soube ali que eu não estava sozinha nessa luta. Eles também passaram pelo mesmo sofrimento, pela opressão do sistema, pelos preconceitos da sociedade. E eles estavam ali para fazer a diferença e mudar as estatísticas.
Daí em diante, foram só progressos e vitórias. Passei pelo desenvolvimento profissional, pessoal e educacional, juntamente com os meus mediadores Júlio e Jorge. Em um certo dia um colaborador falou uma coisa que eu levarei para toda a vida:
“Nós estamos aqui para somar, apoiar, para segurar sua mão. Nós estamos de braços abertos para vocês, mas quem pode mudar a sua própria história é apenas vocês. Vocês precisam acreditar que vai dar certo. Quando forem embora, nós entregaremos uma maleta com ferramentas. Chegando em casa, vocês terão duas opções: jogá-la em qualquer canto ou abri-la e desfrutar de cada ferramenta fornecida…”
E isso foi o que eu fiz. Abri a minha maleta e peguei minhas ferramentas. Fui desfrutar de cada uma delas e usei quatro nos meus cursos profissionalizantes (trança, design de sobrancelha e controladora de acesso). É estranho uma egressa gostar da área da segurança, do outro lado do muro.
E o mais importante de todos veio depois, pois era o começo de um sonho: fazer o curso de ajudante de cozinha e aprender sobre esse amor pela gastronomia. Deus me deu essa oportunidade. Fiz o curso ao longo de 12 dias no Mercado Municipal da Lapa. Eram duas horas de condução cheia, exaustão física e psicológica, cansaço, dor, choro e a sensação questionadora de “será que vai dar certo?”.
Deu certo!
Agradeço à diretoria do Mercado da Lapa, que forneceu a cozinha para o Centro Paula Souza, CAEF e todos os colaboradores envolvidos.
E hoje eu posso dizer para vocês que eu me formei e através disso e de muita luta, da minha persistência, eu ganhei um estágio na renomada confeitaria da chef Marilia Zylbersztajn, formada na importante escola Le Cordon Bleu. Marilia me deu essa oportunidade de crescer cada dia mais.
Ganhei uma bolsa de um ano de gastronomia francesa, fruto de muitos estudos até altas horas. Futuramente, eu serei uma cozinheira. Minha meta agora é ser uma chef!
Quero mostrar à sociedade que nós podemos mudar, sim. Erramos, pagamos, mas sempre há uma chance para recomeçar.
Hoje eu digo que eu sou apta e qualificada para me reintegrar ao mercado de trabalho e voltar ao convívio social.
Talvez eu seja uma em um milhão… Vamos mudar isso, mostrar para a sociedade que precisamos apenas de uma oportunidade, não de julgamentos ou críticas. Juntos somos mais fortes.
Todos unidos por uma causa somos capazes de mudar a estatística da reincidência criminal.
Hoje eu não me sinto mais como uma egressa, pois eu mudei minha história. Quero ser um exemplo de vida e superação para os jovens da atualidade. Para dizer para aquele garoto ou garota, movido na emoção, na ilusão de dinheiro fácil, que não vale a pena.
Vamos mudar o mundo e as pessoas. Essa foi a receita que eu aprendi.
Relato de Ariane Aparecida publicado originalmente em Instituto Ação pela Paz.
Este texto é fornecido apenas para fins informativos e não substitui a consulta com um profissional. Em caso de dúvida, consulte o seu especialista.